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quarta-feira, 21 de março de 2012

FUI EU QUE MORRI?





Pois ontem eu ouvi a harpa dos anjinhos.
Foi assim: assistindo TV, senti um aperto forte no peito, como se alguém tivesse enfiado a mão lá dentro e apertado meu coração. Era uma mão gelada, que esfriou todo o meu corpo e ressecou minha boca. Lembro-me de ter pensado: "logo agora que as coisas começam a dar certo na minha vida, vou cantar para subir?". Respirei fundo e recuperei a consciência que parecia estar perdendo. Caminhei pela casa, melhorando pouco a pouco. E então me vieram pensamentos do tipo: "Será que isso foi uma premonição, de algo que aconteceu com alguma pessoa querida minha?". Fiquei encucado. Quem poderia estar passando por algum sufoco a uma hora dessas (era 11h da noite)? Fui levantando uma lista mentalmente. À princípio, fui contemplando quem provavelmente estava na rua àquela hora - só podia ter sido na rua. Depois raciocinei bem e concluí que, afinal, todos corriam risco de morrer em casa mesmo. Inclusive eu. A imagem do meu pai me veio à mente. Ele já dormia. Teria sido ele? Fui até o seu quarto. Acompanhei sua respiração. Minha mãe estava do meu lado, na hora do susto, acordadíssima. Tanto que nem se deu conta da minha aflição.
Bom, tanto o aperto no peito quanto a sensação de "tragédia" se dissipou. E aí pensei na netinha da minha vizinha, que certa vez, quando tinha dois anos de idade, fez todo mundo rir ao mostrar o seu entendimento da morte.
Foi assim: uma criança tinha morrido por algum motivo e o Jornal Nacional anunciava. Atenta e curiosa, ela perguntou à mãe o que tinha acontecido com a criança. E a mãe, aproveitando a deixa, respondeu: "Foi uma criança que não gostava de comer, sabe, e que fazia bagunça nos brinquedos e não arrumava que morreu". A menina arregalou os olhos, assustada, e perguntou: "Fui eu que morri, mãe? Eu morri?"

sábado, 10 de março de 2012

POR QUE MATAR?





Fui fechar a janela do quarto de brinquedo da minha sobrinha. E lá estava ele no peitoril. Grande, taludo, preto com asas azuis. Virado de bruços, parecia agonizar. Não tive coragem de esmagá-lo com o chinelo. Então chamei um assassino: meu pai. "Mata!", ordenei, me trancando no meu quarto para o caso de o besouro escapar e, irado, vingativo, resolver voar pela casa na captura de quem tentou exterminá-lo.
Mas não foi necessário: meu pai o liquidara de pronto.
"Onde está o corpo?", perguntei.
"Lá fora, na varanda", ele respondeu.
Temendo pela saúde da minha tartaruga, que podia pisá-lo, tentar comê-lo ou coisa do tipo, fui até o besouro com uma pá de lixo. Para minha surpresa, ele ainda se debatia, com as patinhas para o alto. Então não estava morto. Ainda sem querer esmagá-lo com a pá, pensei em apanhá-lo e jogá-lo longe. Ferido, não reagiria. Foi quando tive a segunda surpresa: ele apenas não conseguia levantar voo, estando de bruços. Com o auxílio desastrado da pá, eu acabei aprumando o bicho, que imediatamente se atirou na minha direção, entrando pela minha bermuda. Minha reação (cômica) foi gritar e espanar a bermuda antes que ele me ferisse.
Alguns segundos depois, sem ter-me feito nada, ele saiu de mim e foi à vida, para o céu.

Então questionei: "por que precisamos matar certos bichos indefesos só porque nos causam um nervosinho?". Bastaria que eu o espanasse para ficar livre dele. Agindo assim, não teria dado o grito que dei, nem saltitado como uma rã gélida pela varanda: minha dignidade estaria à salvo.
Ele nada me fez, não tinha o direito de lhe tirar a vida. Só porque acreditei ser ele capaz de me incomodar? Não justifica.
Ah, pobres insetos: mal interpretados graças à sua figura física. Escondem um bom coração. Mesmo as baratas, tão franciscanas.
Estou em comunhão com eles, agora, enquanto gozo tranquilamente da minha casa falsamente limpa.

segunda-feira, 5 de março de 2012

AO MESTRE COM CARINHO





Na última semana de fevereiro a imprensa ficou toda acesa. O motivo, o mais absurdo: o novo piso salarial dos professores. Reajustado em 22% com base no valor anual gasto por aluno, registrado pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB). Agora, o salário passa a ser de R$1.451,00 para a jornada semanal de 40h. Não demorou muito para que os governantes pulassem que nem pipoca, alegando dificuldade financeira para pagar o valor determinado. O ideal, segundo eles, seria que o tal reajuste acontecesse com base no Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), que mede a inflação.
Assim, caso se altere o critério de correção do piso, o valor estipulado cairá drasticamente.
Enquanto o bafafá do trelelê acontece em Brasília, fico pensando nos meus colegas professores (sim, colegas, pois embora eu não exerça efetivamente a profissão, me formei tal e qual). Tão mal remunerados. Tão desrespeitados. E tendo de fazer um milagre por dia.
Uma grande amiga minha, que está há 14 anos no magistério, me contou ontem que boa parte dos seus alunos do 3º ano, cuja faixa etária é de 9 anos, não sabe ler, ao passo que seu filhinho de 4 já reconhece todas as letras do alfabeto. Por que as crianças mais velhas não leem, então? Deficiência da educação brasileira? Não apenas. O problema vem da raiz, do seio da família. São crianças sem qualquer estímulo familiar, sem qualquer condição propícia à aprendizagem. Chegam na escola absolutamente cruas, zeradas, famintas, maltratadas, e cabe ao professor a dupla função de educar e ensinar.
Não por acaso muitos professores se proclamam "educadores". Sem dúvida o são. No entanto toda comunidade passou a compreender erradamente o termo e delegar a ele - e ao Estado - uma obrigação que é sua. Matriculam seus filhos na rede pública, viram as costas e seguem com a vidinha. A escola educa, alimenta, ensina, doa material escolar, uniforme... Por vezes até auxilia na renda familiar com outros benefícios. Um exemplo concreto? Uma consulta a um oftalmologista particular - pago com o dinheiro da escola - porque a aluna "é maluca e se joga na frente dos ônibus", como diz a mãe, com voz esganiçada e mãos nas cadeiras.
Esses e tantos outros casos só se acumulam no dia a dia da escola - e se tornam obrigações, fardos. E o pobre professor, aquele que talvez terá seu salário re-re-reajustado para baixo, fica cada vez mais corcunda, mais necessitado de análise e remédios de tarja preta: longe de ser o herói da imaginação de qualquer criança.
Sim, como dizia Paulo Freire, "Estar na sala de aula é administrar conflitos".
Só que são muitos... São demais... Demais, Paulo...