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quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

O BRASIL CONSERVADOR





Ouvi a imprensa discutir a possibilidade de a ex-mulher do Michel Teló receber a metade dos seus rendimentos como cantor daquela bendita música-chiclete "Ai se eu te pego", tal qual exigiu no processo de separação.
Uma repórter foi às ruas perguntar ao povo, saber se concordavam ou discordavam, e a grande maioria, algo como 80%, acredita que é justo Ana Carolina receber, "por ter estado ao seu lado quando Michel começou a fazer sucesso". Ora, mas ninguém conhece o regime do casamento dos dois - se é que há algum!
O que na verdade está em jogo - e o que me espanta - não é bem a superficialidade dessa discussão, mas o que está por trás dela: o conservadorismo do brasileiro. O pensamento é lógico: a mulher estava com ele, aturando seus achaques, o assédio das fãs, então é evidente que merece a metade dos lucros, ainda que sequer seja a tal "delícia, delícia" da música. Trata-se do bom comportamento familiar do brasileiro. A família deve ser uma instituição exemplar!, diziam nossos bisavós. Ana Carolina, bem ou mal, era a "Senhora Teló", não pode ficar desamparada. Uma das entrevistadas, aliás, alegou que assim como Ana Carolina, também quer a metade de tudo o que o marido conquistar. Não interessa que o casal tenha filhos: as uniões no Brasil continuam sendo por interesse, um acordo de "toma lá-dá cá". Apenas não precisam mais da intervenção patriarcal para se realizar. Casamento é um contrato! Está longe de ser o happy end dos contos de fadas e das novelas.
E a pergunta que eu faço é: é válido requerer a metade dos lucros, mesmo que venham por uma música sem qualquer teor significativo e criativo, uma música que esbarra no vulgar, que provavelmente não precisou de qualquer sacrifício intelectual, moral, financeiro para acontecer?
E a pergunta que eu me faço agora é: será que eu também, pensando assim, não sou um conservador velhaco?
Acho que tal qual as outras pessoas, sou um conservador hipócrita, do tipo que é e finge que não é quando convém. Por exemplo: a literatura infantil. Hoje em dia o mercado editorial exige que as histórias tenham um cunho moralizante, com herói bonzinho, de personalidade simples de ser compreendida. Então se eu quisesse criar um enredo cujo protagonista seja um menino triste, já encontraria dificuldades para publicar por uma boa editora. Então, para vê-lo publicado e bem vendido, faço do meu menino um menino triste que fica de repente alegre. Mas por que ajo assim, ora essa, se o que mais vemos por aí são meninos e meninas preocupados cada vez mais cedo com os problemas da vida; crianças de aspecto melancólico e olhar cabisbaixo? Por conservadorismo. Ninguém quer ler verdades. Só que ao mesmo tempo me faço de liberal com as pessoas, prego a liberdade e a libertinagem na hora da conquista. Como entender essa dicotomia?
O Brasil nasceu como uma cópia; um país inventado a partir da união de diversas culturas. A burguesia, tempos depois, começou a imitar o comportamento francês pós revolução industrial. De uns anos para cá, o comportamento industrial norte-americano (time is money!) . Apesar disso, sempre tivemos entranhado na alma o ranço lusitano, que implica num jeito canhestro, fadista, crítico e falso de julgar as escolhas de vida alheia.
Aonde está, afinal, a nossa sinceridade e coerência de reciocínio ao formularmos algum conceito? Qual é a nossa real filosofia de vida? Por que tendemos sempre a ficar em cima do muro e baixar na mesa apenas as cartas que nos são convenientes, em nome do dinheiro, do status ou de qualquer outra coisa material que nos deslumbre?
Não sei dizer. Me coloquei contra a parede da razão e vou sair de fininho, como um bom brasileiro. Só quero exercer o meu direito de dar a minha opinião sobre assunto do momento (porque também sou do povo): que Ana Carolina vá procurar o seu sucesso pessoal e deixe o Michel gozar da sua musiquinha e fortuna.
Porque quando chegar a minha vez, ainda que na Santa Solidão, não quero me surpreender com as reclamações dos outros possíveis "sócios".

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

TEMPO DE SILÊNCIO






Hoje sou adepto de uma grande sabedoria: se você não tem nada de bom para dizer, melhor é ficar calado.
Não foi sempre assim. A minha vontade de comunicar, dizer algo, dialogar, já foi tanta que saí distribuindo à revelia substantivos, adjetivos, pronomes, verbos e advérbios sem qualquer fundamento, sem qualquer razão. Transbordei da forma mais indigna acreditando na satisfação (vazia) das minhas necessidades.
Solidão iludida.
Após tantas angústias, corridas contra o tempo, noites sem dormir na tentativa de preencher o vazio criativo, descobri que de nada adianta falar por falar (escrever por escrever) sem que o que for compartilhado tenha alma. A minha alma sincera.
O oco existe e é preciso respeitá-lo.
Para que nasça uma árvore forte, preparar a terra.
Dominado pelo vazio, não penso mais no seu lado negativo: para mim, os caminhos estão abertos.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

OLHAR DE MENINO





"As lágrimas são a alma vazando"
Foi uma criança quem disse isso. E quando li, pensei: como somos bobos em acreditar que sabemos tudo da vida só porque crescemos.
Quando criança, eu chorava muito. Por qualquer motivo. Lembro que sentia uma mágoa muito grande; era como se carregasse no estômago uma pedra pesada, da qual eu tinha de me livrar. Por conta disso, não raro eu ouvia a minha mãe, irritada, dizer: "guarde suas lágrimas para quando eu morrer!"
Eu obedeci. Do fundo do meu inconsciente.
E desde então, quando a pedra retorna, minha alma não vaza. As fronteiras que a cercam tornaram-se altas demais. Uma represa intransponível. Tanto, que é preciso forçar o choro: espremer os olhos, quase sufocar: uma lágrima que escorre é uma vitória, um ligeiro alívio.
Dentro de mim ficou um mar.
E quanto mais minhas pernas, meus braços, pés e mãos cresciam, mais água salgada se acumulava dentro de mim.
Dentro de mim ficou um oceano.
Pensei, então: por que, agindo com impaciência ou falta de atenção, somos capazes de transformar completamente a estrutura espiritual de uma criança?
Ah, que coisa divina ter ouvidos de ouvir as sábias palavras de uma criança!
Crescido, passei a ter problemas com crianças. Elas me incomodavam sobremaneira. O processo era mais ou menos esse: eu fugia delas e elas vinham, como que encantadas, atrás de mim. Quando uma delas me olhou nos olhos e disse que eu não era "gente grande", e que, portanto, não tinha de me obedecer, foi que me dei conta de que a razão pela qual eu as detestava era o fato de me sentir perscrutado pela sua inteligência e sensibilidade. Mesmo caladas, elas me mostravam que eu era um igual. Eu era também uma criança.
A negação da infância na adolescência me prejudicou de duas maneiras: eu fui apagando da memória o que vivi na infância e impedi o desenvolvimento saudável da adolescência. De repente eu estava adulto. E não sabia discernir muito bem o que eu era. Reneguei uma fase, pulei outra e não me identificava de modo algum com a última. Em qual patamar do desenvolvimento humano eu me encontrava?
Não sabia.
Continuo não sabendo, aliás, embora hoje já esteja acostumado com a minha condição - como quem perde um membro e passa a conviver, sem conflitos, com a novidade ao longo dos anos.
Não foi só o meu corpo que cresceu, afinal. Meus pensamentos amadureceram e me deram a condição de questionar isso e todo o resto da minha história. Só que não sob a ótica de um adulto mergulhado até o pescoço nas areias movediças das responsabilidades, mas de um menino que peregrina o tempo querendo apenas se resgatar.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

I salute you




Não sou do tipo fã. Não pagaria muitos reais para assistir ao show de um cantor estrangeiro. Mas isso não impede que eu ouça e goste das canções de certos artistas nacionais e internacionais. Com Whitney Houston não foi diferente.
Eu tinha 9 anos de idade quando assisti ao filme "O guarda-costas" e fiquei deslumbrado pela sua voz.
Um tempo depois, vim descobrir que a música que minha irmã ouvia, que era trilha de uma novela chamada "Mandala", era cantada por ela. "Didn't we almost have it all" não saiu mais da minha cabeça. E já adolescente, eu conseguia alcançar algumas notas da Whitney nessa música e manter a minha voz sem desafinar, como ela.
Em 1998 corri para loja a fim de comprar o seu disco "My love is your love". Eu iniciaria a minha coleção dos seus discos com aquele.
Nos videokês da vida eu sempre canto "I will always love you" me sentindo a própria.
Agora, o último hit de Whitney, "I look to you", tem sido o maior sucesso do box do meu banheiro.
Tal qual muitos artistas que não conseguem administrar a fama, Whitney sucumbiu. Não às drogas que consumiu (e a consumiram), mas à ela mesma.
É uma pena.
Para ela e para os que admiravam a sua voz.

Salute

eh eh eh eh eh eh oooooh
Say you wanna walk away
You ain't got nothing to say
I salute you (eh)
Go on out the door now you take care
No more tears to shed
What you expecting me to beg
Well I'm not...I'm done
So when you leave
Just close the door behind you
Cause,I'm feeling kinda taller than you (lately)
I'm feeling kinda stronger than you (lately)
I feel kinda better than you
And I know just what to do (yeah)
I feel like doing my hair
I'm feeling like calling some of my friends
I feel like going to a club
And partying
(CHORUS)
Cause I´m soldier girl in this world
I stand alone, I can be strong
I walk for miles, I made it home
It's good to know without you I made it
Soldier girl in my world, I took for fall now I stand tall
For the pain and all I made it through and now I'm vow to say to you
Salute...eh eh eh ..eh eh eh
Salute...eh eh eh...eh eh eh
You think you know everything
And you think that your s*** don't stink, well it do
And when it comes to me you don't have a clue
It took me all of these years, to realize that you don't belong here
I can do better
You say, "I'll never do better"
Yeah right whatever ooooh
I'm feeling kinda taller than you (lately)
I'm feeling kinda stronger than you (lately)
I feel kinda better than you
And I know just what to do
I feel like doing my hair (my hair)
I'm feeling like calling some of my friends (my girlfriend)
I feel like going to a club
And partying
(CHORUS)
(bridge)
"So don't call it a comeback, I've been here for years"
Through all of the drama and the pain and all of the tears
It's time to stop this roller coaster, say I wanna get off
And start moving mountains, swimming seas, and climbing over
(CHORUS)

Saudações

eh eh eh eh eh eh oooooh
Diga que você quer ir embora
Você não tem nada a dizer
Eu te saúdo(eh)
Saia por essa porta agora e cuide-se
Não há mais lágrimas para derramar
Você espera que eu implorasse?
Bem eu não estou...Eu cansei
Então quando você partir
Apenas feche a porta atrás de você
Porquê,estou me sentindo mais alto que você(ultimamente)
Estou me sentindo mais forte que você(ultimamente)
Eu sinto melhor que você
E eu sei o quê fazer(yeah)
Eu vou fazer meu cabelo
Eu vou chamar algumas amigas
Eu vou a uma boate
E festejar
Refrão
Pois eu sou uma guerreira nesse mundo
Eu estou sozinha, eu posso ser forte
Eu ando por milhas, eu fiz isso em casa
É bom saber que sem você eu consegui
Guerreira no meu mundo,eu cai,agora estou em pé
Pela dor e tudo mais,eu consegui atravessar e agora eu faço um voto para dizer para você
Saudações...eh eh eh ..eh eh eh
Saudações...eh eh eh ..eh eh eh
Você acha que sabe tudo
E acha que a sua merda não fede,bem,fede sim
E quando vem a mim você não tem idéia
Levei todos estes anos, para perceber que você não pertençe aqui
Eu posso fazer melhor
Você diz, "eu nunca vou fazer melhor"
Yeah ooooh tanto faz
Estou me sentindo mais alto que você(ultimamente)
Estou me sentindo mais forte que você(ultimamente)
Eu sinto melhor que você
E eu sei o quê fazer
Eu vou fazer meu cabelo(mey cabelo)
Eu vou chamar algumas amigas(minhas melhores amigas)
Eu vou a uma boate
E festejar
Refrão
Ponte
"Então não chama isso de uma volta,eu tenho estado aqui à anos"
Atraves de todo drama e toda dor e todas as lágrimas
É hora de parar essa motanha russa,dizer que quero descer
E começar a mover montanhas,abrir oceanos, e escalar mais alto
Refrão

sábado, 11 de fevereiro de 2012

UMA CRÔNICA




Sinceramente, isso não é uma crônica.

Melhor dizer que se trata de um breve retrato. Desfocado. Fotografia de um instante, à medida que o ônibus avançava em velocidade alta pelas ruas movimentadas do Rio.

O celular da mulher tocou e ela só atendeu depois que o refrão do pagode repetiu pela terceira vez.

Depois do “ALÔA! OI, TUDO BEM?”, um “Ai, meu Deus... Jura? Ah, meu Deus...”

– Quê foi? – perguntou uma voz de menina.

– Espera ela acabar de falar! – repreendeu uma voz de homem.

– Ah, meu Deus... E agora?... Ah...”

– Que-qui-é?, FALA LOGO!

– ESPERA, MENINA!

Voltei o meu olhar, também curioso, fazendo coro com a menina. Até eu estava ansioso com aquele “Ah, meu Deus” choroso. Alguém morreu. Estavam os três sentados no banco do outro lado. Vi através das pernas abertas de uma mulher que estava parada ao lado deles, no corredor do ônibus. A mulher do celular, na ponta; o homem, à janela, e uma menina de uns 12 anos no colo dele. Por um instante imaginei alguém contando para aquela mulher que o homem que ela rejeitou há uma semana tinha faturado a loteria. Sorri com a ironia, mas logo fiquei sério quando a ouvi contar para a menina o que, afinal, acontecera:

– A Kombi que levou a mudança do seu avô matou o seu cachorro.

– QUÊ?!

Voltou a dar atenção para o telefone, indiferente à reação da menina:

– Puxa vida, né, gente... Como é que vocês deixaram ele sair, também... Afe... Como é que foi? (nesse momento ela falava olhando para a filha, como se repetisse o que ouvia) Ah, a Kombi deu a ré e esmagou a cabeça do cachorro... Ai... E saiu muito sangue, hein? ATÉ OS MIOLO (sic)?!! Ai...Tcs... Fazer o quê, né... Bom, deve ter sujado a varanda toda... Fazer o quê, né? Ah, já lavaram? Melhor, melhor... Ai, tô acabada, viu, tô há três dias sem dormir direito... Mas me diz, como é que está o Lucas? Arrasado, né? Ele se apegou muito ao cachorrinho... Tcs, não pode, não pode... Consola ele aê. É, tô ouvindo ele chorar... Consola aê... Diz que logo-logo a cachorra dá cria de novo e ele ganha outro filhotinho. É... É... Fazer o quê, né: não tem jeito. Antes um cachorro que uma criança! Mas deixa eu aproveitar pra te contar, menina, de ontem... Pois é... Fui lá... Fuuuui...

A partir disso eu já não prestava atenção ao que ela dizia. Aproveitei que mais uma vez a tal mulher que estava em pé abriu as pernas e observei a reação do homem e da menina. Pensei: ela deve estar choramingando no ombro dele, e ele a consolando.

Que nada: compartilhavam um fone de ouvido e riam. Riam muito.

A mulher fechou novamente as pernas.

E eu voltei meus olhos para a paisagem urbana.

Um filhotinho de cachorro morreu atropelado por um motorista de Kombi imprudente. Teve a cabeça esmagada. Não deve ter sofrido em agonia nem nada. Não teve tempo nem de uivar. E os donos, igualmente imprudentes, passam por cima do fato porque é menos um para dar de comer. Até porque logo a cachorra dará nova cria. Outros virão. Que fim terão, ninguém sabe. Apenas desconfia.

Nascimento e morte: fatos sem remédio.

Fazer o quê?

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

VIDA BOA





Ontem assisti no Jornal Nacional à confusão nos trens do Rio de Janeiro. Houve pancadarias, gente passando mal, enfrentando maus bocados no calor do vagão lotado, cujas portas foram trancadas pelo maquinista. Na mesma edição soube mais notícias da greve dos policiais em Salvador - e o caos que tem se instaurado por lá - além da novidade: aqui no Rio também terá uma. O plano é acabar com o Carnaval e, consequentemente, arrombar com a economia do Estado. Pior para eles, afinal, que são funcionários do Estado.
Semana passada a confusão foi no metrô. Mais corre-corre, pancadaria, desespero, empurra-empurra. E suor. Muito suor.
No Centro da Cidade, um enfeite de carnaval desabou sobre a cabeça (dura) de um idoso que passava bem na hora. Ainda por lá, um prédio desabou por conta de uma obra mal calculada. E com ele carregou mais dois, que nada tinham a ver. Pessoas morreram. Seus corpos, segundo o que me informou uma prima, que é enfermeira e trabalhou nos resgates, pareciam de papel: chapados, amassados, como os de desenho animado. Não me espanta que muitos deles tenham ido parar sem querer no lixão.
Então somos mesmo isso? Lixo?
Eu sabia. Mas fingia não saber para poder manter a minha empáfia diante de minhas vitórias.
Ah, mas como somos tolos!
E como também somos infantis quando esfregamos na cara do outro as nossas felicidades. O fato de não estarmos envolvidos em nenhum desastre social, natural etc, de estarmos protegidos em nossas casinhas confortáveis, com nossa família, já é motivo para comemorações. No entanto ela deve ser feita de modo comedido, no silêncio de um quarto, para si mesmo, de madrugada, que é quando todos dormem.
Bem baixinho para que nem os Deuses adivinhem a nossa presença incólume na Terra.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

DO CAJU MINHA INFÂNCIA TEM O CHEIRO




Foi assim: o encontrei caído no chão, com o aspecto doentio, mal acabado, podre; rachaduras expunham seu interior branco. Apanhei-o e, como de costume, cheirei. E apesar da aparente morte da fruta, o perfume meio doce, meio cítrico se mantinha. Então de repente fiquei pequeno, mais menino. Retornei à casa do meu avô, em Araruama, onde passava minhas férias de verão e tomava o suco dos cajus que tirávamos do alto do cajueiro no meio das tardes quentes. Eu era feliz.
Nunca experimentei dar uma mordida no caju - prevenido do seu gosto amargo. Mas o cheiro... Ah, como eu gosto do cheiro do caju! Não pela metamorfose que ele permite que eu faça: é a garantia de que também eu terei um futuro, ainda que meu corpo e minha alma tragam marcas profundas de experiências não muito agradáveis; é a constatação de que a Esperança existe.
A minha memória é confusa, muito do que de fato vivi se misturou à fantasia. No entanto a força do caju permaneceu intacta - tal qual os cajueiros da casa do meu avô e da minha, que embora tomados pela praga, ainda produzem sua fruta.
Até tombarem, como nós.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

CRÔNICAS CAMPESINAS V: GATUNOS, GATOS


Passaram-se nove meses - assim calculei nos dedos logo depois de ter chegado.
A casa estava um lixo, tal qual a encontramos quando fomos pela primeira vez. O sinal de abandono se refletia no pó sobre os móveis, nas minhoquinhas mortas aqui e ali, no cheiro característico de casa fechada, no matagal alto que se apossou de todo o quintal, no vazamento que escorreu pela parede e danificou completamente um quadro feito de quebra-cabeça. Apesar disso, não perdemos o nosso ânimo e recomeçamos. Não do zero porque, afinal, dessa vez a casa estava pronta para ser habitada. Bastava um dia dedicado à limpeza e voilà!: teríamos o nosso canto no campo de volta.
Porém um fato agiu como um soco no estômago: a constatação do desaparecimento de certos objetos que enfeitavam a nossa varanda. Um ladrão invadira a nossa casa! A cisterna também estava aberta. O que teria lá dentro? Uma pessoa morta? Um animal?
Não estávamos mais em absoluta paz. A perturbação do Rio de Janeiro nos acompanhou para o campo. A qualquer momento poderíamos ser surpreendidos pelo gatuno que andou fazendo cagadas por ali. Seria uma pessoa perigosa? Bom, a maioria das coisas que roubou foi enfeites. Mas uma delas pode ser entendida como mensagem de bandido: o nosso holofote, que iluminava todo o quintal à noite. O ladrão fizera um trabalho limpo, de eletricista, sem deixar rastro. E era como se dissesse: "qualquer dia eu posso aparecer armado e render vocês, fazer a festa".
"Quem terá sido?" passou a ser a nossa questão diária. Cada um que cruzava o nosso caminho passou a ser suspeito. Terá sido o vizinho? Ou o nosso caseiro? Talvez algum morador da rua, alguém que passasse por lá e via que a casa estava abandonada? Quem sabe o dono do "Secos e Molhados" da esquina, cujo olhar fugidio parecia demonstrar culpa? Quando um homem estranho bateu à nossa porta para pedir R$2,00 para o almoço, eu disse: "Foi ele! Veio ver que cara os donos da casa tinham!".
Bom, voltamos do campo sem uma certeza absoluta acerca do verdadeiro gatuno. Mas desta vez notamos que uma outra presença inoportuna acabou nos sendo útil, quando encontramos, na véspera da partida, um rato morto perto da nossa garagem.
Gatos de rua fazem a ronda por ali, dia e noite. E nas tardes de calor, pegam um fresquinho no muro que separa a nossa casa da do vizinho. E geralmente bem em frente à janela do meu quarto. Na primeira vez que os vi tomei um susto. Era madrugada, e os olhos vermelhos-demoníacos dos gatos a me encarar trouxeram a certeza de um colapso iminente. Só que depois, na manhã seguinte, compreendi que se tratava de sentinelas, apenas, da nossa tranquilidade quase perdida.