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segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

O MEU AMOR NÃO É DESTA TERRA!

Uma amiga me ligou logo cedo. Queria minha companhia.
De orientação católica, se preocupava com o que poderia acontecer em ambientes como aquele. Foi assim que ela começou a conversa, meio exasperada, meio tímida, logo que eu atendi o telefone. Não entendi nada, e quis saber o que ela queria dizer.
- Só me diz sim ou não: você pode me fazer companhia? - E baixinho: - não dá para falar por telefone; não é nada sério, mas... pode ou não?
A essa altura eu todo me tremia de curiosidade. Que estripulia, afinal, ela pretendia fazer? Respirei fundo e respondi que tudo bem; aonde nos encontramos e a que horas?
Chegando lá, a encontrei sentada num hidrante, o olhar distraído vidrado no nada. Parecia tensa. Não disse "oi" nem nada para mim. Apenas me estendeu isso:



Eu ri. O que significava aquilo? Era bobagem, gastaria o seu rico dinheirinho...
- Eu quero - me interrompeu - na verdade é um caso de vida ou morte. Tem um cara...
Ela não precisava dizer mais nada. Era mais uma vítima deste buraco negro que vem engolindo as pessoas. Atende pela alcunha de "paixão cega". Não falei mais nada, apenas acompanhei seus passos rua acima.
A casa da cartomante era bem humilde, decorada com simplicidade, remontando um ambiente completamente exotérico, cujas cores predominantes eram o vermelho, o amarelo e o preto. Em alguns pontos, imagens de bruxas, ciganas, duendes etc compartilhavam a função de enfeite com lenços coloridos que esvoaçavam e mensageiros do vento, que tilintavam. Quem nos atendeu foi a própria, uma mulher morena, excessivamente magra, cujos olhos fundos pareciam querer saltar das órbitas. Passava dos cinquenta anos e tinha a voz muito rouca. "A voz da tumba", lembro ter pensado. Minha amiga, ao contrário de mim, se sentia familiarizada, relaxada. Retribuía os sorrisos amarelos da cartomante como se fosse sua velha conhecida. Até aceitou o café que ela nos ofereceu.
- Vocês podem aguardar um instantinho enquanto eu me preparo - ela disse, sumindo logo depois por detrás das cortinas.
Eu cochichei para a minha amiga:
- Você já tinha vindo aqui?
- Não, mas a J. sim e disse que ela é ótima.
Eu olhei mais uma vez para o papelzinho, que ficara no meu bolso.
- Mas ela só cobra isso?
- Pois é... Não sei como consegui um horário. Foi milagre. Isso aqui lota, sabia?
A cartomante voltou.
- Pode entrar, amorzinho.
- A senhora se importa se ele me acompanhar?
A mulher me encarou. E eu pude ver que ela tinha uma bela catarata nas duas vistas, o que lhe dava um ar mesmo de bruxa de conto de fadas. Só faltava o gato preto ronronando por ali. Enviei-lhe um sorriso sem jeito. Se ela fosse boa adivinha teria sabido o meu desejo; teria me respondido: "não, prefiro inclusive que ele espere lá fora. Coitadinho, olha só: está sufocado pelos meus incensos". Porém respondeu, simpática:
- Claro que não! Pode entrar também, florzinha.
Eu ouvi bem? Ela me chamou de florzinha? Ok. Melhor não perguntar para evitar constrangimentos.
O quarto da consulta era apenas uma filial da sala de espera, apenas com a diferença de que num canto havia uma mesa redonda com uma toalha branca por cima, um copo cheio d'água e outro incenso fumegando. Sentei num banquinho desconfortabilíssimo, enquanto ela e minha amiga ficaram cara a cara à mesa. Observei tudo, anotando cada movimento na memória para poder descrever a experiência depois.
A cartomante, cujo nome era Consuelo, à medida que embaralhava as cartas do tarô, orientava:
- Concentre-se seriamente naquilo que você pretende saber e me diga qual é o assunto - fez uma pausa cênica, pousou o baralho empilhado à frente da minha amiga com os olhos cerrados e disse: - não precisa nem me dizer! Você quer saber sobre amor. Acertei?
- Ahan.
- Muito bem, então corte em três.
Minha amiga obedeceu. Consuelo apanhou o bolinho mais próximo a ela e foi abrindo uma a uma. E dizendo o que provavelmente minha amiga gostaria de ouvir pois pouco a pouco a expressão tensa com a qual a encontrei mais cedo foi se dissipando, dando lugar à luminosidade, à esperança. De vez em quando, Consuelo olhava para mim. Rapidamente. Provavelmente farejava a minha intenção de lhe avaliar. Não prestei muita atenção no que ela dizia à minha amiga: meus pensamentos estavam impressionantemente em Machado de Assis e em Clarice Lispector. E quando lembrei da Macabéa foi que deixei escapar um sorriso frouxo. E se tudo aquilo de bom que ela vaticinava não fosse realmente um engano, se na realidade acontecesse justamente o contrário? Ironia demais. Clarice riria.
De qualquer forma a consulta não demorou muito. Minha amiga queria apenas saber do amor. Tinha direito a três assuntos, dos quais abriu mão para não esquecer o que a levara até lá. Pagou Consuelo, agradeceu e foi indo em direção à porta. Tão rápido que mal tive tempo de lhe acompanhar os passos. Foi então que Consuelo me segurou. Um choque percorreu todo o meu corpo, que congelou.
- E você, não quer uma consulta?
- Nã...Não... Eu... - gaguejei, catando com os olhos algum outro ponto onde fixá-los senão os olhos esbranquiçados da cartomante - Eu sequer trouxe dinheiro...
Ela fez um muxoxo. Acho que alimentou alguma esperança de abrir as cartas para mim. Não pelo dinheiro, mas por alguma curiosidade mórbida.
- Uma pena - respondeu - eu acho que você deveria ouvir algumas coisas, sabe...
Eu não mordi a isca. Sorri, somente, dando-lhe já as costas. Mas minha amiga não resistiu:
- Que coisas? Boas ou ruins...? Ele...
- Não posso dizer, querida. Sinto muito. Não de graça. É por conta dos meus guias, entende?
Entendíamos perfeitamente, imagina...
Nos encaminhamos para a saída - eu cheio de alívio. Dos fundos da sala, no entanto, Consuelo gritou:
- Só uma coisa eu posso!
Nos voltamos a ela ao mesmo tempo:
- O seu amor não é desta terra!
E voltou para o seu quarto, perturbada, como se recém saída de um súbito transe.
Após nos encararmos um tempo, minha amiga e eu tomamos a rua. E não adianta puxar pela memória o que ela me falava com tanto entusiasmo acerca da sua consulta. Porque ecoava na minha cabeça agora oca aquela frase final, dita com força e escárnio:

O seu amor não é desta terra!





sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

PRIMEIRÍSSIMO CONTO

Foi escrito em 2002, quando eu tinha apenas 19 anos.
Naquela época eu sofria forte e perigosa influência de Clarice Lispector e Virginia Woolf, autoras que eu lia compulsivamente, fechando meus olhos e ouvidos para todos os outros - assim como aconteceu na minha trêmula adolescência com a Agatha Christie.
A ideia veio de uma conversa que ouvi entre duas mulheres numa loja, em Búzios. Uma delas tinha uma banheira ao ar livre na sua casa e viu um passarinho pousar numa árvore para morrer. Eu adorei a história, mas a questão da morte ainda me incomodava - de modo que resolvi dar um novo destino ao bichinho, um destino que eu acreditava ser o melhor que um ser vivo poderia ter: o encontro com um amor. De uma trágica narrativa real surgiu uma ficção que punha frente a frente o espírito solitário e aprisionado e o gregário e livre - sentimentos que me tomavam por inteiro, me dividiam, e que eu tentei representar nas figuras da mulher e do passarinho, respectivamente, sendo estes, portanto, o tal segredo do título. É o meu também.
Considero este conto experimental, bastante aquém da qualidade artística que hoje, dez anos depois, já alcancei. Mesmo assim vale a pena publicá-lo, não só por ter sido o primeiro de todos, (o que o torna, pelo menos para mim, raro) mas porque de certa forma recupera um momento nebuloso da minha vida, em que eu me ligava muito mais aos fatos simbólicos do mundo do que agora.

Espero que aqueles que conseguirem chegar até o seu ponto final gostem.



SEGREDO DE PASSARINHO E DE MULHER



Repleta de espuma e pétalas de rosas até o pescoço, a mulher de repente notou a presença do passarinho. Estava empoleirado há muito tempo num galho de árvore seco, com uma aparência abatida por qualquer tristeza. As asas exaustas da insistência de um vôo sem razão, bico e olhos voltados para o chão, o passarinho aguardava. Não fizera nenhum barulho – provavelmente para não incomodar a mulher que se deliciava na banheira ao ar livre. Ela ficou a olha-lo, com certo respeito de principiante, temendo espantá-lo, sem porém abrir mão do téte-à-téte.

Um idiota, viu-se pensando a mulher, um verdadeiro palerma por se preocupar tanto com as coisas da vida (ela se orgulhava do fato de conhecer tudo, até mesmo os sentimentos; era capaz de desmembrar qualquer alma baseando-se apenas num simples olhar) Sim, o passarinho sente por alguma coisa que lhe aconteceu. Uma perda, talvez. Nada vale tanto a pena, porque tudo ao redor não passa de uma grande farsa inventada por um doido. Perde-se tempo de vida – tão curta para o que ela realmente pretendia fazer; afinal, já passava dos cinqüenta e sentia intimamente que não conseguira completar um ciclo de vida sequer ( a minha existência até aqui foi uma linha reta constante e sem obstáculos, percorrendo todos os acontecimentos numa velocidade estonteante – escrevera certa vez no que seria um esboço de biografia ). Perde-se tempo de vida lamuriando-se pelos planos que não deram certo, pelas decepções, por brigas incoerentes... o que era aquele passarinho? O que amofinava-o a ponto de deixá-lo completamente cinza e felpudo? Nada. Absolutamente nada. O passarinho simplesmente desconhecia o motivo da sua própria tristeza e este era um segredo só dele: o não saber.

Desviou a sua atenção do passarinho. Também ela fugia de preocupações naquele momento de puro relaxamento. Há mais de um mês e meio trabalhava ininterruptamente num livro de memórias, sem um descanso sequer – tendo obviamente o mínimo de horas de sono –, para no fim não conseguir quem o editasse da maneira que merecia. Mas não precisava daquilo: a arte é significativa na sua trajetória e não no produto que resulta. Fez de tudo para se sentir viva ainda, ter com o que se preocupar, escapar a todo custo do ócio cada vez mais próximo com a chegada das grandes idades. Não precisava de nada daquilo, mesmo. Tinha a sua casa confortável; dinheiro para fazer suas malas na hora que bem entendesse e viajar; um jardim enorme, florido, tão próximo de uma natureza mais viva do que ela. Contudo não era todo dia que recebia uma visita como a do passarinho (ah, de novo ele!). Sentiu que não poderia livrar-se dele só com uma leve indiferença forçada. Por mais que ele permanecesse calado, a sua aura clamava por uma desconhecida compreensão, vinda de qualquer lugar – da árvore ou dela mesma ali na banheira velha – mas a sua solidão de rolinha ultrapassava os limites possíveis entre o sutil e o ostensivo, e a mulher, por mais que tentasse, jamais o alcançaria. Ele tinha o mundo aos seus pés, e ainda assim se dava ao luxo de ser triste. Ela conhecera Paris, Veneza, Madri, Amsterdã, Moscou, Índia, Nova York... mas nunca alcançara plenamente a total liberdade que só ele tinha. Como desejara na sua infância poder criar asas! Como desejara ter coragem de se desvencilhar da mamãe galinha e provar que houve um equívoco: nascera águia e que por um triste acidente fora parar no chão. Por medo de se machucar, deixou-se ser criada junto às galinhas. Porém na sua essência ainda vivia um cosmo de águia, sim-sim. O passarinho sabia disso, reconhecia nela o predador, por isso não ousava fitá-la, nem piar. Mas ela piou, na esperança de que ele a admirasse por saber falar também a sua língua. Para quê tenho de aprender tantas coisas banais se elas não me tornam capaz de me comunicar com o que existe de mais completo na Terra? Eu só falo com gente; eu só falo de gente; e esse passarinho não vale um minuto do meu tempo! Só mesmo um ignorante como ele é capaz de dar as costas às boas coisas da vida. Deus, com tantos outros galhos cheios de vida para pousar! – Como isso a irritava – Nunca lhe faria mal – apesar de não lhe ter simpatia – jamais lhe atiraria uma pedra ou gritaria para espantá-lo, mas a verdade é que a sua presença ali a fazia pensar e pensar dói.

Acendeu um cigarro para relaxar ainda mais (antes de entrar na banheira levara um maço de cigarros, uma maçã fresca, uma taça de champanhe cheia até o gargalo e um som, que resolveu não ligar para não perturbar a voz do silêncio). O cigarro a estava matando, o médico dissera, mas se ela tomasse uma vez por dia, durante três dias, de seis em seis meses, um copo de saião com leite batido no liqüidificador, era garantido que o seu pulmão limparia pouco a pouco. Suco de manga também é muito bom – dissera-lhe um amigo artista plástico que deveria, àquela época do ano, encontrar-se em algum lugar de Portugal expondo as suas obras estranhas. E para os meus nervos, o que eu tomo? – indagara ao médico, sabendo que não haveria resposta convincente. O cigarro a estava matando.

Sua casa estava vazia e pela varanda vinha o eco das suas paixões, aspirações, ódios e invejas. Só lhe restava agora resolver o mistério do passarinho e saber quem é aquela estranha mulher que arquejava uma voz arrogante, longe de ser parecida com a sua, dentro de si. Fora obrigada a ser o que não gostaria, atuar num espetáculo do qual não lhe cabia o papel principal; fora obrigada a conhecer as coisas e aprender o significado das palavras sofisticação, beleza e cultura. Só deste jeito poderia acompanhar o marido diplomata nas missões pelo mundo. Como ele a amou sem ser satisfatoriamente correspondido, Deus... Nas noites de inverno eles costumavam ouvir Chopin e Mozart abraçados em frente à lareira – faz frio na serra e quase todas as noites ela se via tentada a acende-la como antigamente. Só não o fazia porque não tinha mais quem catasse lenha suficiente para uma semana.

Enquanto pensava em todas essas coisas, sentiu uma ponta quase insípida de prazer ao reparar melhor nos seus gerânios, nas hortênsias, hibiscos, palmas...lindos. Eles faiscavam, ao contrário dela e do passarinho, que permanecia inerte no galho frio. É esse o motivo da infelicidade do passarinho – dizia-lhe naquele instante a dona da voz irritante: além de ser feio no corpo de rolinha, não é humano. E eis o seu conflito: ele queria ser o que não é. Ao contrário de você. No entanto, ponderava a mulher, ainda que ele se transforme num ser superior e evolua do pensamento ao raciocínio, não saberá o que é valioso na vida. Só lhe restará respirar, voar, comer minhocas... para sempre. E você, mesmo que deixe de ser o que não gosta de ser, permanecerá tola e contraditória, porque enganou a si mesma ao se acomodar com a vida de dona-de-casa com dons artísticos.

Fechou os olhos e fuzilou a dona da voz, ao mesmo tempo que sentia o grande mistério do passarinho martelando na sua consciência. Essa maldita curiosidade de entender o porquê de tanta tristeza! Passou então a sentir vontade de cortar o mal pela raiz, literalmente (ai, droga! Como me deixei queimar pelo cigarro?!), para que o passarinho sumisse dali e outros não fossem mais se empoleirar naquela árvore taciturna e engolida pelos segredos particulares de todos os seres animados que por ali rondaram nas noites calorentas de verão. Naquela noite daria uma festa, e ela, a árvore, não existiria mais e não dissecaria seus convidados tal qual fazia com o passarinho. É, pensou a mulher, profundamente orgulhosa e com um largo sorriso no rosto, eu posso dar uma festa para quantas pessoas eu quiser; minha casa é grande, tenho amigos inteligentes e engraçados, e inimigos fracos que procuram sempre me adular. Fitou então pela milésima vez o passarinho: que horizonte se estende além dele mesmo? Ah, ele levantou a cabeça! E olha só: vem vindo um outro passarinho...

O tal outro da mesma espécie pousou gracioso ao lado do desmazelado companheiro e o encarou, recebendo em troca um tímido piscar de olhos. Ficaram assim, um olhando para o outro, por um instante – que para a mulher pareceu a eternidade, já que começava a sentir as mãos e os pés demasiadamente enrugados – e de repente, sem aviso ou ensaio, voaram juntos rumo ao céu azul.

Ela, por fim cansada do descanso, cerrou novamente os olhos, como que para aproveitar os últimos segundos de sossego. Esqueceu do passarinho, esqueceu do testamento que mandara o advogado providenciar, esqueceu do ar condicionado que precisava ser consertado. Era apenas ela, os seus sais de banho comprados na loja de Mrs. Flanders, em Londres, e a sua banheira colonial adquirida por uma bagatela de um milhão de dólares. Esse é o real valor da vida, concluiu, realizada e amena por dentro, vazia e insatisfeita por fora. Mas de repente ouviu um longínquo pio, tão longe quanto a realidade da vida era para ela. Mais outro, um pouco diferente desta vez... os dois juntos, será? Abriu os olhos e lá, um pouco além do que a sua miopia era capaz de fazer enxergar com nitidez, ela encontrou as rolinhas, juntas, sobre o grosso galho da árvore mais frondosa que existia no verdejante jardim, a que mais cresceu e deu bons frutos. O passarinho cabisbaixo de antes alçava agora curtos vôos, acompanhado pelo outro (ou seria outra?). Pulavam de galho em galho animadamente. Também ele daria uma festa, afinal.

Partiram ambos lado a lado deixando-a para trás...

A mulher resolveu apanhar a taça de champanhe do chão, sem sentir entretanto nada pulsar dentro de si. Não há saída quando o assunto é segredo. Aproximou a taça dos lábios mas estacou abruptamente: um bichinho, um inseto asqueroso, nadava dentro do copo, tentando alucinadamente sobreviver por entre a espuma. Ele vai escapar – pensou, num misto de desejo e oração, sabendo que poderia fazer a diferença entre o existir e o não existir do bicho. Poderia salvá-lo.

Se viu assim reluzente e aliviada, apanhando-o cuidadosamente com as longas unhas para não desperdiçar o seu resto de vida. Depois, colocou-o sob o seu pescoço, próximo ao coração ofegante de muitos sentimentos. Entornou num gole só a bebida quase quente e finalmente se permitiu gozar de uma estranha alegria, lembrando-se, num luminoso raio, da maçã vermelhinha e ainda fresca, que rolava saltitante pela grama rumo ao formigueiro.

Pelo menos desta vez tinha uma companhia sincera com quem compartilhar as delícias da vida.



sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

LÚGUBRE NANGCHANG

Província de Surin, Bangkok.


Tudo parece improvisado. A decoração é simples. Sob uma tenda fora montado um altar enfeitado com flores, velas e incensos (estes ainda apagados). No chão, três enormes tapetes de renda vermelha são estendidos para que os noivos e seus convidados possam se sentar. Aos poucos estes vão chegando e se acomodando.
Ao contrário do que de costume, trazem na face uma expressão grave: nunca vivenciaram tal experiência. Ali, bem em frente, a noiva está deitada, ainda bela apesar dos hematomas, vestida com um vestido de noiva de seda branca, de luva e algumas joias. Seu rosto encontra-se delicadamente maquiado; seus longos cabelos negros, escovados. Parece adormecida, mas na verdade está morta.
O acidente de trânsito que tirara a vida de Ann ocorrera na noite de réveillon. Aquele era o quarto dia subsequente.
Sem que qualquer som fosse entoado - afinal, não se tratava de um casamento comum, muito menos de um funeral - Chadil Deffy, o noivo, excepcionalmente de black-tie (quando deveria trajar um bhaku bordado) aproxima-se da sua noiva cadáver e faz seus votos:
- Em frente à minha mulher, que acolho, aceito amá-la, respeitá-la e ser-lhe fiel.
Põe-lhe a aliança no dedo e beija sua mão.





Em seguida, Chadil recita, emocionado, os Tisarana, Pancasila e Vendana.
Seguindo o ritual tradicional do Nangchang, seus pais citam o Mangala Sutta e o Jayamangala Gatha.
As velas e os incensos são acesos pelo noivo, que confidencia: "Nosso amor foi algo muito grande, mas por lástima não podemos viajar ao passado e mudá-lo. A vida é curta, e hoje realizo meu desejo e agradeço a todos que estão presentes"
Mais tarde, quando perguntado a respeito do presente de casamento, dado pela esposa, Chadil responde que "o melhor de todos será ver cumprido o seu desejo de reencontrar a amada em sua próxima vida".

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

ILUSÕES




"Eu não queria que o dia terminasse sem que, antes, eu tivesse algo concreto em que apoiar o resto da minha vida" - eis um pensamento recorrente que me vem ao coração quando chega a hora de ir para a cama e (tentar) dormir. Quase sempre me deixo ir de mãos vazias - e quando elas estão cheias, vejo, no dia seguinte, que por algum descuido permiti que as ilusões recém-adquiridas se esvaíssem.
Gostaria de ter menos tempo para escrever em blogs e estar no mundo: por que aceitei essa humilhante condição de prisioneiro, que me condicionou a ponderar bastante antes de colocar o nariz para fora de casa? Em algum instante do meu passado fiz uma escolha muito errada, disse um "não" enviesado, inoportuno. Mas quando foi isso? E por que foi assim? Serviu para quê? Para eu moldar a cinzel um olhar particular a respeito dos outros? Para eu possuir a calma e o silêncio necessários à auto-comporeensão? Essa vida de monge tibetano há um bom tempo me angustia, me entulha o pensamento de incertezas. Por outro lado, uma vida de badalações e redes sociais corpo a corpo não me atrai. Festas em que só conheço o anfitrião também não. Que coisinha sou eu, afinal, que não me assento em nenhuma situação humana?
O que pensava que queria há dez minutos, já não quero mais. O que achava que sabia, um simples refletir durante o lanche da tarde já me mostra que na verdade eu não sabia - e nem saberei.
Quando os primeiros sons de um começo de dia chegam aos meus ouvidos e sem querer querendo me despertam, é como se eu, ali, tivesse acabado de sair do útero quentinho: estou de novo na mais profunda estaca-zero que um sujeito pode se dar ao luxo de estar.
No mais: navegar é preciso. Então começo a catar em toda parte a mais nova e passageira ilusão.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

O DOM DE ILUDIR




Naquele dia o menino completaria três anos de tratamento na clínica especializada em cuidar de crianças autistas. Mas por que, então, Patrícia não percebia qualquer sinal de melhora no comportamento do filho?
A clínica fora uma indicação e parecia ter conseguido se solidificar, após 12 anos de funcionamento. Intrigada, a mulher resolveu investigar. Não demorou muito para averiguar que nenhuma criança das que conhecia tivera um avanço no tratamento.
Utilizando-se dos seus conhecimentos como delegada, imediatamente entrou em contato com a Delegacia do Consumidor (Decon) . Uma semana depois uma outra mulher sentava à frente da psicóloga fundadora da clínica. Gostaria de saber como deveria proceder para que fosse iniciado o tratamento do seu filho caçula. Fingindo excesso de zelo, alegando os constantes casos de fraude na medicina, pediu que a psicóloga lhe apresentasse o seu registro profissional. Imediatamente foi atendida.
A psicóloga parecia bastante segura, profissional. E sequer desconfiava de que na verdade estava sendo filmada. Dizia que, mesmo sem conhecer a criança, podia garantir à mãe que o tratamento do seu filho deveria ser feito por três horas, todos os dias da semana. O valor do tratamento? R$90,00 por hora.
Ela foi presa em flagrante. Depois, indiciada por estelionato, propaganda enganosa e exercício ilegal da profissão.
Mas essa história não acaba aí: três dias depois da prisão ela foi liberada graças a um habeas corpus concedido pela (in) Justiça.
Beatriz da Silva Cunha, a falsa psicóloga, afirmava que era pós-graduada com especialização no tratamento de crianças autistas, mas as investigações apontam que ela sequer concluiu a graduação.
O mesmo processo de investigação, coordenado pelo delegado Maurício Almeida, encontrou provas de que Beatriz também torturava os seus "pacientes", imobilizando-os, amarrando pernas e braços para fazer com que elas comessem. Em alguns casos, cobria a boca das crianças para que elas não cuspissem a comida.
Uma funcionária afirmou que, segundo Beatriz, o propósito era que as crianças não melhorassem e que os pais, desesperados com a condição dos seus filhos, se eternizassem pagando as consultas. Muitos destes pais, chegaram a vender bens valiosos, como apartamentos, carros e joias para continuarem o tratamento.



Mas por que estou a falar sobre isso?
Simples: porque me lembrei que existem pessoas capazes de enganar, de trapacear, de iludir seus semelhantes. E sem pena - com prazer, até.
Nunca fui vítima de nada tão serio. Só que nada me tira da cabeça um "ainda", que insiste em martelar, como se ser enganado seriamente fosse apenas uma questão de tempo.
Duas coisas me fizeram também, no dia de hoje, pensar nesse assunto: o primeiro foi que no banco, uma moça barriguda que estava na fila do caixa, ao ver que a fila preferencial, do outro lado, esvaziara, saltou de uma para a outra valendo-se da (falsa) "desculpa" de que estava grávida. Fraude: era pura banha!
A segunda foi que uma amiga minha, escritora, postou no seu blog o quanto lhe doera ao se ver apunhalada pelas costas por um precioso amigo que, após torturar-lhe todas as noites com frases aparentemente inocentes e amigas, mas carregadas de maldade, que a faziam desabar aos prantos na cama, tratou de tripudiar do sério problema que enfrentava com um familiar e, com isso, levá-la à completa decepção.

Fico me perguntando: estamos mesmo irremediavelmente cegos, vulneráveis à essas mentes perversas que nos cercam, nos adulam, nos comovem com seus gestos de atenção e carinho, quando na verdade nos preparam alguma armadilha que os beneficie - ou até mesmo nos conduzem gratuitamente ao sofrimento, como se fôssemos objetos para o seu deleite?
Não sei. Entretanto tive ao meu lado pessoas que não gostavam de mim - e que apesar disso sorriam à minha presença, me elogiavam, diziam-se minhas amigas. Porém eu sempre soube quem elas eram pois, afinal, embora igualmente perversas, não chegavam a ser psicopatas. Não tinham o talento de um. De modo que logo pude ver a sua verdadeira face. E continuei ao seu lado, também eu fingindo acreditar naquela farsa, forçando sua inteligência, esgotando-lhe toda a capacidade de mentir. É claro que não tendo qualquer vínculo, como escola, cursinho etc, essas pessoas sumiram da minha vida.
E então fui eu quem se divertiu.
Só que a pergunta que não quer calar é: até quando?


segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

SUA ESTRELA UM DIA VAI TER QUE BRILHAR

Outubro de 1997


Eu não estava nervoso.
Uma voz muito doce me confidenciava que eu ganharia aquele prêmio, ainda que a minha família me alertasse, carinhosa, quanto a possibilidade da perda.
Minha fé em mim estava inabalável. Sabia que tinha escrito um texto primoroso.
Preparei-me para a noite da premiação com zelo: queria estar bonito.
Naqueles dias de adolescência, embora fizesse literatura desde menino, eu sequer pensava em seguir carreira como escritor. Apenas fiz o que o regulamento do concurso previa e enviei , no último dia, as dez laudas da peça de teatro escritas em 15 minutos.
Eu não sabia que estava, na verdade, selando o meu destino; convergindo meus pensamentos, meus desejos profissionais para um único foco, o único ofício o qual eu posso afirmar quantas vezes forem necessárias, para quem quiser ouvir, que eu executo muito bem.
O local para o princípio de tudo era o Teatro O Tablado, no Rio de Janeiro, onde, após a apresentação da peça O Gato de Botas, seriam anunciados os nomes dos vencedores do concurso Agir Maria Clara Machado de Teatro.


Fachada do Teatro O Tablado, no Rio de Janeiro

Sem qualquer ansiedade, assisti à peça. E no final, como prometido, um homem subiu ao palco, convidou os responsáveis pela Editora Agir e a Maria Clara Machado em pessoa, e fez o anúncio. Quebrando os padrões, ele começou pelo primeiríssimo lugar. E eu, antes mesmo que ele pronunciasse qualquer sílaba, ouvi o meu nome ecoar pelo teatro. Era novamente aquela voz, que me avisara desde os minutos que comecei a escrever, em transe, a peça.
Foi rápido demais. Sob mil aplausos, me levantei do lugar na plateia e subi ao palco. Tímido, um tanto desengonçado, olhar abaixado: um menino de 14 anos de idade, suburbano, aluno de uma escola pública. Fiz uma rápida viagem ao Céu nos segundos em que me dirigi ao centro do teatro.
Enquanto cumprimentava todos que lá estavam para me receber, um séquito de repórteres e fotógrafos saltou sobre mim. Eu estava abraçado à Maria Clara Machado e completamente desorientado. Uma única pergunta me passava pela cabeça: "E agora, faço o quê?"
O ator Luis Carlos Tourinho, que interpretava o Gato de Botas, fez questão de voltar à cena para me cumprimentar. Mais fotos. Mais entrevistas. De repente deixei de ser o menino estranho, encolhido no seu canto, quase imperceptível, para me tornar o alvo de olhares, comentários e elogios.
No banco atrás do meu, na plateia, estava um rapaz que durante a apresentação da peça se vangloriava de que seria ele o vencedor do prêmio. Sequer chegou ao terceiro lugar. Ao lembrar disso, ao lado da Clara e do Tourinho, tive a constatação do meu talento. Do meu talento silencioso, que não faz alarde. Ali, a minha estrela estava brilhando como nunca. E a sua luz me apontava todo o caminho que eu deveria seguir a partir de então.


Segunda montagem de "O Gato de Botas", em 1997. Luis Carlos Tourinho interpretava o Gato

Ao chegar em casa, acreditando ter terminado o momento de glória, dormi tranquilo, sem esperar mais nada da vida.
Foi então que, no dia seguinte, recebi um telefonema:
–Você está no jornal!
Era apenas uma nota na coluna "Gente Boa", do Segundo Caderno do O Globo. O título era "Na estrada com um aval de peso". Dizia, no texto: "Nasce um escritor pelas mãos de Maria Clara Machado".
Algumas semanas depois o jornal O Dia, do Rio de Janeiro, entrou em contato: gostaria de publicar uma matéria a meu respeito. Foi assim que tive o meu primeiro "Perfil" publicado, com direito a foto e tudo.


Matéria do jornal O Dia - primeira reportagem com foto minha

Apesar de deslumbrado, não perdi de todo a minha razão e questionava o porquê de tanto interesse sobre mim. Não demorou muito para eu descobrir: uns dias antes da minha premiação, um rapaz, que também vencera um concurso literário em outro estado, foi desmascarado: sua mãe foi quem escrevera o conto. Era isso, então: a imprensa estava ávida para descobrir se não havia acontecido o mesmo comigo.
Fiquei mais de três horas conversando com a jornalista, que me enrolava numa teia de perguntas. como se estivesse interrogando um possível criminoso. E eu ali com ela, leve, confortável, em crescente demonstração das minhas capacidades criativas. Mostrei-lhe outras histórias minhas., que ela leu com cuidado. E quando ela saiu da minha casa, junto com o fotógrafo, segurou na minha mão, me olhou nos olhos e disse:
– Um dia eu ainda vou ter muito orgulho de dizer que fui a primeira jornalista a publicar o perfil do Rodrigo Lopes da Fonte.
Uma semana depois o jornal O Globo ligou. Queria me ter na capa do seu jornal de bairro. Dessa vez fui até a redação do jornal a fim de ser fotografado no seu estúdio. Antes, porém, dei uma nova entrevista, para uma jornalista tão simpática quanto a do O Dia.


Pela segunda vez no O Globo - desta vez capa do jornal

Novembro chegou e se foi tão rápido quanto dezembro. Ao longo desses dois meses, meu nome apareceu em outros tantos jornais - sem fotos, em colunas.
Eu ainda continuava um menino tímido, porém plenamente consciente do meu talento como escritor. Foi por isso que aceitei, em 1998, dar uma palestra no SESC sobre a minha participação no concurso para uma plateia composta por jovens estudantes da rede pública do Rio de Janeiro.
Em maio deste mesmo ano, o jornal Extra, recém criado, telefonou: queria saber o que eu estava fazendo. Mais uma vez eu estava nas páginas de um jornal - na verdade, na da revista "Canal Extra", com a mesma foto que tirara para O Globo. "Eu estou escrevendo uma peça de teatro., contei à jornalista pelo telefone mesmo, uma adaptação de Alice no País das Maravilhas, mas com características brasileiras".
A peça morreu no nascedouro, no entanto. Preocupado com outras questões da vida prática, não segui adiante com este projeto - que, coincidentemente, foi levado a cabo pela Luana Piovani.
Foi então que retornei ao confortável estado do anonimato.
Não me arrependo de ter aberto mão temporariamente da carreira como escritor em nome da minha formação escolar. Naquela fase da minha vida, eu não tinha maturidade nem conhecimento para meter as caras no mundo artístico. E como um vendaval que passou na minha vida, a atenção voltada para mim virou-se para outros artistas que vieram a seguir.
Não sofri: o que precisava saber, este reconhecimento me deu. Outras vitórias literárias vivi. Fui publicado em antologias ao longo dos anos seguintes.
Experimentei
também muitas, muitas derrotas, que me fizeram até questionar as vitórias.

Hoje, retorno àqueles dias.
Neste ano de 2012 fará 15 anos que tudo começou.
Se eu tivesse seguido em frente e me dedicado completamente, de corpo e alma, destemidamente, estaria completando, portanto, 15 anos de carreira como autor de teatro e sabe lá Deus de quantas coisas mais. Mas quis a vida que eu seguisse outros rumos.

Agora, prestes a completar 29 anos de idade, eu tenho recuperado em mim a mesma inocência, a mesma força artística e auto-confiança daquele adolescente que ficou registrado nas páginas dos jornais. Com a diferença de que agora já não sou mais imaturo para a arte.
Tenho nas mãos todas as armas para me afirmar novamente como um escritor.
E como disse Moacyr Scliar, no prefácio da primeira antologia de contos na qual um texto meu foi publicado, a respeito de todos os escritores que ali estavam: "quem sabe não sai daqui o primeiro prêmio Nobel de literatura brasileiro?"
É o que eu quero.

Salve o dia 29 de outubro de 1997!
Salve Maria Clara Machado!